O samba nasceu na Bahia?

Publicado originalmente no http://www.musicaemprosa.musicblog.com.br em fevereiro de 2010

Ainda hoje há quem insista numa polêmica, em certa medida ultrapassada, sobre a origem do samba. Engraçado que a frase de samba da bênção, de Vinícius de Morais, diz “Porque o samba nasceu lá na Bahia”… e a partir daí, começam debates, amiúde  apaixonados e maniqueístas, em que se enaltecem as características de um e se deprecia as características do outro. Por exemplo, no site http://www.samba-choro.com.br, há um comentário, em certa medida indignado, pelo fato do samba de roda da Bahia ter sido, em novembro de 2005, considerado patrimônio da humanidade pela Unesco, e o samba do Rio não ter sido. “O samba carioca, sem dúvida, o que reflete melhor a história e os costumes brasileiros. No entanto, só nós sabemos disso. Os gringos só sabem que a gente rebola.” Na verdade, dizer que o samba do Rio melhor reflete a história e os costumes brasileiros, comparado com o samba da Bahia, não parece ter nada a ver com o samba em si, mas pelo fato de que, quando o samba surgiu, o Rio de Janeiro era a capital federal.

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Parece que o samba do Rio, do morro e da Escola de samba, reflete uma identidade carioca para o Brasil, assim como o samba da Bahia, menos onipresente do que o samba no Rio de Janeiro, reflete uma identidade cultural do Recôncavo Baiano, identidade esta que nem é própria de todo o Estado da Bahia (de dimensões muito maiores e com vários tipos de identidades culturais), e nem é exclusiva, pois se identifica a Bahia com outros ritmos. Segundo diversas fontes de pesquisa, o samba de roda da Bahia é mais antigo, surgido por volta de 1860, como manifestação da cultura dos africanos que vieram para o Brasil. Tendo suas origens no recôncavo, na Região onde ficam os Municípios de Santo Amaro e Cachoeira, na Bahia. Costuma dizer que “A manifestação está dividida em dois grupos característicos: o samba chula e samba corrido. No primeiro, os participantes não sambam enquanto os cantores gritam a chula – uma forma de poesia. A dança só tem início após a declamação, quando uma pessoa por vez samba no meio da roda ao som dos instrumentos e de palmas. Já no samba corrido, todos sambam enquanto dois solistas e o coral se alternam no canto.”

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O ritmo, todavia, se espalhou por várias partes do país, chegando, entre fins do século XIX e Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro, Capital Federal, apropriou-se de algumas características do samba baiano original e agregou outras, adquirindo forma, ritmo e identidade próprias, de modo que hoje existe uma identificação quase imediata do samba com o Rio de Janeiro (assim como a Bossa Nova se identifica com o Rio de Janeiro, apesar de um dos seus criadores – João Gilberto e sua batida de violão, sem a qual não haveria bossa nova – ser baiano, e baiano de Juazeiro, da Região do  Rio são Francisco).

Vinícius de Morais, em dois artigos reunidos na coletânea Samba Falado, organizado por Miguel Jost, Sergio Cohn e Simone Campos, trata da origem baiana do samba carioca:

“O samba nasceu do êxodo dos negros baianos para o Rio de Janeiro. No antigo mercado, eles ficavam executando seus ritmos e cantando suas melopeias, dançando e batendo palmas. Essa é a forma primitiva da ‘batucada’ – o conjunto de instrumentos de percussão que posteriormente se iria instalar nas janelas de morros, com a população mais pobre da cidade”

E se uma personagem baiana se destaca, entre aquelas que foram para o Rio de Janeiro: é a santamarense Tia Ciata, nascida Hilária Batista Almeida, cuja história é relatada em obra de Roberto Moura “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro” (FUNARTE, 1983).  No aspecto, a  referência:

“Na sala (da casa de Tia Ciata), o baile onde se tocavam os sambas de partido entre os mais velhos, e mesmo música instrumental quando apareciam os músicos profissionais, muitos da primeira geração dos filhos dos baianos, que freqüentavam a casa. No terreiro, o samba raiado e às vezes as rodas de batuque entre os mais moços. (…) As grandes figuras do mundo musical carioca, Pixinguinha, Donga (filho de mãe baiana), João da Baiana (idem), Heitor dos Prazeres (também filho de mãe baiana), surgem ainda crianças naquelas rodas onde aprendem as tradições musicais baianas a que depois dariam uma forma nova, carioca.” (pág. 103)

Vinicius de Morais faz uma referência semelhante:

“O samba verdadeiro nasceu dos Terreiros circunvizinhos da antiga Praça XI, sobretudo no de uma negra baiana chamada Tia Ciata. Esse terreiro Pixinguinha, Donga, João da Baiana conheceram quando meninos. Foi ali que se desenvolveu e onde foi criada a forma primitiva do choro, do qual Pixinguinha é o maior mestre, e onde foram criados os primeiros sambas do populário carioca, feitos para saíremn no carnaval”

Tamanha foi a importância das Baianas (Tia Perciliana, Tia Amélia, etc.), que as escolas de samba do Rio de Janeiro até hoje desfilam a Ala das Baianas, em sua homenagem. No entanto, assim como a partir do trio elétrico o frevo pernambucano ganhou um novo formato nos carnavais da Bahia, o samba carioca logo adquiriu características próprias que o identificam claramente com o Rio de Janeiro. Francisco Bosco, na excelente obra sobre Dorival Caymmi, analisa as distinções entre o samba baiano e o samba carioca:

“Ora, o samba baiano não é um samba malandro, sua forma não traduz esteticamente o ethos da malandragem, já que esse ethos, pelo menos em sua configuração mais definida, é típico da formação social do Rio de Janeiro. Como já foi indicado, o samba baiano é atravessado pela religiosidade, é melodicamente diferente do samba carioca (embora seja difícil elucidar teoricamente essa diferença, que soa tão clara aos ouvidos), e ainda é ritmicamente diferente, pois a síncope não possui o mesmo sentido nas duas tradições”

Discutir, então, se o samba nasceu na Bahia não faz do samba carioca menos rico ou menos autêntico. Na verdade, foi como ritmo por excelência do Rio que o samba transformou-se num ritmo “nacional”, enquanto na Bahia o samba-de-roda divide atenções com outros ritmos e manifestações musicais baianas.

P.S. O termo ethos significa, de um modo geral, “os traços característicos de um grupo, do ponto de vistasocial e cultural, que o diferencia de outros. Seria assim, um valor de identidade social

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